sexta-feira, 28 de junho de 2013

Quando o barulho chega

Tinha momentos que parecia uma cidade fantasma. Mas o silêncio era bom, e quando a tarde chegava quieta dava até pra escutar o som dos ponteiros do relógio. De vez em quando uma moto passava quebrando a lentidão do apartamento, e o barulho agora trazia uma impressão de companhia. Passava pelo tal bloqueio criativo. Não conseguia escrever mais nada. Estava naquela fase de andar pelas esquinas. Parecia que o estoque das vivências tinha chegado ao final. Estava de saco cheio da própria imaginação. Precisava da chatice das pessoas. Dos possíveis gestos de compaixão. Da crueldade alheia. Da impaciência do trânsito. Da sirene da ambulância do bombeiro. 
Todos os livros da estante já estavam manjados. Então sentia a volta da vida novamente. Depois ia reler cada exemplar um a um, outra vez. Mas onde estava o erro? 
Numa caminhada pela feira aproveitou alguns minutos pra relaxar um pouco. Parecia uma discussão sobre o preço do rateio do pescado. Um fato banal que não mudou muita coisa. Estava farto de compreensão. Viver vai além da compreensão. Estar vivo é o melhor remédio. É superior a qualquer explicação idiota ou científica. Tentou colocar isso no papel. Escreveu duas páginas, e leu em voz alta. Que texto fraco! Não tinha vida! Estava cheios de resquícios de compreensão, e dádivas, e preocupação demais com o leitor. Foda-se o leitor! Se fosse pra escrever tinha que ter confusão. A vida é dessa forma por que o texto não poderia ser assim também, ora?! Era só saber mentir. 
Enquanto houvesse intenção, nenhuma palavra soaria verdadeira. Pra mentir só tinha que saber o que aceitavam como verdade, e aí digitar até o fim. Ninguém aceita verdade na cara. Por isso que enchem o saco quando contrariados. Às vezes o cinismo é o melhor caminho. Escrever não é pra fazer amizade ou inimizade, mas simplesmente para vomitar ou assobiar: é estar vivo. Rasgou aquela besteira, e jogou no cesto de lixo perto da poltrona. Abriu o freezer e lá no canto tinha o resto de um vinho tinto. Colocou uma taça, e ligou pr’aquela maluca lá do outro lado da cidade. Marcaram de se encontrar às 23h ao lado do posto da polícia militar. Nessa hora eles ainda poderiam estar em alguma passeata.

quinta-feira, 20 de junho de 2013

Torcicolo

Um estrondo interrompeu a minha leitura. Estava na metade de um conto do Rubem Fonseca quando três carros ficaram engavetados no meio da avenida. O bate boca foi geral. Vontade de escutar um som. Bob Dylan naquele disco ao vivo de 66. O som é cru e tem energia quando a banda faz a parte elétrica. Penso que me comportei adequadamente mesmo quando fui provocado, a situação já passou, mas outra vez se repetiu com a mesma babaquice de sempre. Não adianta perder tempo, muito menos palavra escrita. Resolvo voltar pra leitura. De alguma forma isso está anotado na cachola. Se um dia tiver que me lembrar, vou saber usar a informação. A pancada foi forte. O trânsito parou. Tinha um cara com a mão no pescoço. Ele estava no carro do meio que ficou bem estragado.

terça-feira, 18 de junho de 2013

Passe Livre

De longe notei que um velho estava na minha direção. Vinha puxando o chinelo. A calça estava toda mijada. Logo pensei naquele blues do Cazuza: “quando eu estiver velho / tarado e gagá / com um copo de cana”... Daí ele catou a chave do bolso e se aproximou do carro. Abriu a porta lentamente. Tinha uma mulher lá dentro. Devia ter uns 20 e poucos anos. Ela me olhou sem graça e virou o rosto. Se escondeu. Decerto ficou com vergonha. O coroa ia se divertir naquela hora da tarde.  Enquanto milhares de pessoas já começavam a tomar conta das ruas, o velhote ia tirar umazinha em algum hotel vagabundo da redondeza. Tá certo! Jovem tem que reivindicar. Tomar conta da rua se quiser mudar alguma coisa. Por que quem já está na beira da morte merece todo o respeito. Fui pagar uma conta na lotérica no comércio ao lado, e risquei um bilhete sem nenhuma convicção. A atendente me desejou sorte. Retribui com um sorriso. Ganhei a rua, e uma loiraça passava lá do outro lado da calçada com uma roupa grudada no seu corpo. Dava pra ver cada detalhe. Ela andava sem nenhuma preocupação. Passou um carro e buzinou, um camarada de moto também meteu a mão na buzina, o motorista do ônibus também mandou o seu recado: PAM! PAM! Eu estiquei a vista até onde consegui enxergar. Ao que parece desse lado da cidade a agitação ganha outro contorno. Pressinto que ainda existi uma certa felicidade no ar. Talvez por que agora a juventude e a velharada estão de mãos dadas nesse mesmo barco.   

domingo, 16 de junho de 2013

Enquanto fica gelada lá no freezer

Bem no fundo 

No fundo, no fundo, 
bem lá no fundo, 
a gente gostaria 
de ver nossos problemas 
resolvidos por decreto 

a partir desta data, 
aquela mágoa sem remédio 
é considerada nula 
e sobre ela — silêncio perpétuo 

extinto por lei todo o remorso, 
maldito seja que olhas pra trás, 
lá pra trás não há nada, 
e nada mais 

mas problemas não se resolvem, 
problemas têm família grande, 
e aos domingos 
saem todos a passear 
o problema, sua senhora 
e outros pequenos probleminhas.
(Paulo Leminski)