Tinha momentos que parecia uma cidade fantasma. Mas o
silêncio era bom, e quando a tarde chegava quieta dava até pra escutar o som
dos ponteiros do relógio. De vez em quando uma moto passava quebrando a lentidão
do apartamento, e o barulho agora trazia uma impressão de companhia. Passava
pelo tal bloqueio criativo. Não conseguia escrever mais nada. Estava naquela
fase de andar pelas esquinas. Parecia que o estoque das vivências tinha chegado ao final.
Estava de saco cheio da própria imaginação. Precisava da chatice das
pessoas. Dos possíveis gestos de compaixão. Da crueldade alheia. Da impaciência
do trânsito. Da sirene da ambulância do bombeiro.
Todos os livros da estante já
estavam manjados. Então sentia a volta da vida novamente. Depois ia reler cada exemplar um a um,
outra vez. Mas onde estava o erro?
Numa caminhada pela feira aproveitou alguns
minutos pra relaxar um pouco. Parecia uma discussão sobre o preço do rateio do pescado. Um
fato banal que não mudou muita coisa. Estava farto de compreensão. Viver vai
além da compreensão. Estar vivo é o melhor remédio. É superior a qualquer
explicação idiota ou científica. Tentou colocar isso no papel. Escreveu duas
páginas, e leu em voz alta. Que texto fraco! Não tinha vida! Estava cheios de
resquícios de compreensão, e dádivas, e preocupação demais com o leitor.
Foda-se o leitor! Se fosse pra escrever tinha que ter confusão. A vida é dessa
forma por que o texto não poderia ser assim também, ora?! Era só saber mentir.
Enquanto houvesse intenção, nenhuma palavra soaria verdadeira. Pra mentir só tinha que saber o que aceitavam como verdade, e aí digitar até o fim. Ninguém aceita verdade na cara. Por isso que enchem o saco quando contrariados. Às vezes o cinismo é o melhor caminho. Escrever não é pra
fazer amizade ou inimizade, mas simplesmente para vomitar ou assobiar: é estar vivo. Rasgou
aquela besteira, e jogou no cesto de lixo perto da poltrona. Abriu o freezer e lá no
canto tinha o resto de um vinho tinto. Colocou uma taça, e ligou pr’aquela
maluca lá do outro lado da cidade. Marcaram de se encontrar às 23h ao lado do
posto da polícia militar. Nessa hora eles ainda poderiam estar em alguma passeata.