Um
pequeno ajuste na engrenagem, e uma calibrada no motor. A caranga ia ficar no
jeito. Então abriu uma garrafa de cerveja e começou a desmontar as peças. Cada parafuso
ganhava um cuidado especial. Nunca tinha desmontado um na vida, mas não parecia ser difícil. Foi ajeitando todas elas de acordo com o desmonte. Logo emendou um
Motorhead no som da sala. A vizinha lá do outro lado da
grade olhava de cara feia. Quando começou a tirar o sabão do capô, o Led Zeppelin tomou de assalto
com Black Dog. Olhou as peças no chão, e fez uma careta. Nisso o celular tocou.
Iria buscar as meninas às onze da noite. O negócio era tocar violão numa
quebrada da cidade. Ao confirmar que levaria o baseado ouviu umas risadinhas do
outro lado da linha. Abriu outra garrafa de cerveja, e encheu o copo. O vizinho
da casa da esquina apareceu para bisbilhotar. Veio com um papo de que o dia ficaria
melhor se estivessem assando uma carne.
O dono da caranga topou na hora, e o
vizinho da casa da esquina foi buscar o resto de algumas peças de carne, frango,
linguiça, e metade de um tubo de cachaça na casa da mãe. Queria dar uma força
ao amigo. Ascendeu a churrasqueira, e ficaram ali batendo papo. O som já estava
no máximo quando a brasa começou a ganhar força. O vizinho da casa da esquina
só ficava olhando sem se intrometer na bagunça. Também porque o cara não
entendia porra nenhuma de carro. Então era melhor não atrapalhar. Aí ele ficou
ali de frente pra churrasqueira com o copo de cerveja na mão. Num instante, a
filha da vizinha do sobrado de dois andares surgiu na conversa. Os dois estavam
esperando que ela aparecesse com aquele shortinho jeans.
Quando o dono da caranga começou
a limpar a caixa de câmbio: Surfin’bird, do The Trashmen, deu as cartas na sua
versão original. O vizinho da casa da esquina começou a rir do som da banda.
Nunca tinha escutado antes. No início achou estranho, mas logo já estava
batendo o pé no chão. Então aproveitou o embalo e virou outra dose de cachaça
enquanto a coxa de frango pingava gordura na brasa. Nessa hora a casa já estava
numa fumaça miserável. A caranga estava toda desmontada. Iria ficar no jeito
pra mais tarde. No som tocava She’s the one dos Ramones num show ao vivo de
1980 em Paris. As caixas de som estavam enfurecidas e a garagem agora parecia
uma arena de rock and roll.
Fez isso pra atazanar a vizinhança. Um dia antes, o
vizinho da casa da direita tinha escutado música sertaneja o dia inteiro, então
quis dar uma resposta. Nada é de graça. O churrasco começou a cheirar quando o
vizinho da casa da esquina batia cabeça com a faca no ar. “Ramones é bom pra
caralho”! As pessoas que passavam pela casa olhavam intrigadas. Rock and roll?!
Que música mais agressiva é essa? É barulho demais. E ainda dizem que a nossa
música é ruim. O vizinho da casa da esquina ascendeu um cigarro, virou o boné
pra trás, e perguntou se o brother precisava de ajuda no carango. “Não! Tá tudo
tranquilo”. A filha da vizinha enfim apareceu para animar o sábado. É ela! Aí os
dois foram até a frente da casa. Só que a moça não estava com o tal shortinho
famoso. Estava de saia. Mini-saia! E caminhava até o início da rua. Por
incrível que pareça nesse momento o Ramones tocava uma balada. A trilha deu
certinho com aquele rebolado inocente. Dois minutos de beleza. O vizinho da
casa da esquina ainda ficou esperando ela voltar. Não voltou. O dono da caranga
olhou as peças no chão, e fez aquela mesma careta. Pensou: não posso ficar
enrolando. Preciso terminar antes da noite chegar, senão hoje não tem farra. Boa parte do motor continuava esparramada pelo chão. Era preciso se concentrar em cada peça, então pegou a
lata de graxa, uma estopa, um tubo de óleo e uma chave phillips. A carne começou a ficar no ponto. Daí veio uma lasca, uma dose & outra cerveja para amaciar
o estômago, e eis a montagem! Somente um pouco de concentração e o motor
estaria tinindo. Foi quando a birita começou a fazer efeito. Precisou molhar a
cabeça.
Mas antes de ir ao banheiro colocou um disco do Blues Etílicos. Encheu mais
um pote com querosene, e começou a lavar o carburador. Pronto! Tá limpo! Agora
é cada peça no seu lugar. Não tem erro! O vizinho da casa da esquina resolveu
fechar o bico por consideração. Tava na cara que o dono da caranga não tinha a
manha. Que aquilo ali ia ser pedreira. Ajustar um motor sem experiência é fatal.
Foi quando analisou a churrasqueira e resolveu tirar o espeto das coxas de
frango, cortar a carne, e colocar mais carvão. O cheiro
estava maravilhoso. Já tinha tomado conta da rua. Tanto é que apareceram uns
dois ou três desocupados atrás de uma boquinha. O dono da caranga parecia confiante. As peças estavam
se encaixando. Quando chegou na metade do trabalho, o doidão percebeu que
algumas peças haviam sobrado, e ficou puto por que não sabia aonde deveria
encaixá-las. O vizinho da casa da esquina quis dar um palpite, mas preferiu
ficar na sua. Preferiu ir na sala trocar
o som. Colocou Rolling Stones. O dono da caranga ao escutar Under my thumb ganhou outro
fôlego. Sorriu! Quis ficar calmo. Mas logo começou a escurecer e nada da
porcaria do motor se ajustar.
Então largou de mão e desistiu de querer sabe
aonde aquelas malditas peças deveriam ser colocadas. Aí só de sacanagem
resolveu ligar o carro. Se explodisse! Foda-se! Depois de uma tarde inteira naquela
trabalheira dos diabos, só queria ver que merda ia dar. Colocou a chave na
ignição e ligou. O danado roncou forte. O vizinho da casa da esquina deu uma
gargalhada de felicidade. Já estava chapado. Daí os dois ficaram rindo da
situação. Onde já se viu um carro funcionar faltando peças? Acelerou com
vontade, e escutou uma espécie de tiro, como se fosse de uma escopeta. Tirou o
pé imediatamente. Nisso o vizinho da casa da esquina querendo mostrar serviço disse
que poderia ser o platinado. No escapamento só se escutava os pipocos. Então o
dono da caranga resolveu desligar. Catou as peças que sobraram e jogou no canto
da garagem. Também já estava no grau. Quando anoiteceu, rezou para que o carro
funcionasse. Deu a partida e bingo! Que possante de fibra! Garoto bom de briga.
Mesmo faltando peça ainda estava funcionando. Trancou o portão e
acelerou devagar até a entrada da rua.
O vizinho da casa da esquina estava todo
arrumado. Fez sinal e perguntou qual era a boa da noite. O dono da caranga
resolveu convidá-lo pra farra. O porra estava sem rumo mesmo, então
quis convidá-lo por consideração. Aí os dois foram atrás das garotas. Vinte e
cinco minutos depois os faróis do carro se apagaram. A luz do painel também
sumiu. O dono da caranga fez aquela mesma careta, só que agora com um ar de
preocupação. Tirou o pé do acelerador, e parou no acostamento. Desligou o carro, apagou os faróis, e ligou
novamente. A luz do painel continuou apagada. Resolveu esperar um pouco. Um
minuto. Três minutos. Ligou os faróis. Não funcionaram. Deu um murro no painel.
Uma porrada forte. O vizinho da casa da esquina levou um susto, mas começou a
rir. O dono da caranga ficou brabo, e mesmo assim resolveu seguir em frente.
Fez um longo percurso até a casa das meninas. Precisava desviar da polícia. Não
dá mole pro azar. Provavelmente, eles estariam só esperando algum vacilão pra
darem o bote certeiro. Com as meninas na caranga foram para uma quebrada da
cidade. Nesse momento tocava: Tora Tora dos Raimundos. Ao dobrar uma quadra
infelizmente deu de cara com uma fila de carros. Puta que pariu! Blitz da
polícia militar. O carango só tava funcionando meia boca, e agora? As meninas
gritaram para que ele procurasse algum desvio. Já era! A parada era enfrentar.
O vizinho da casa da esquina ficou pálido. O dono da caranga respirou fundo e
deu uma risada de sacanagem, os faróis tinham voltado ao normal. Que carro de
fibra! Na hora H, ele não ia deixar o seu brother em apuros. Quando chegou a
sua vez de passar pelos cones, o primeiro policial fez sinal de que poderia
passar, mas logo à frente o segundo mandou encostar à direita. Que coisa
maluca! Mandou encostar ali na frente. Mas cadê aquela parada de furar os pneus?
Ué! Tá lá atrás. Por que então parar na frente da blitz? Decerto porque a fila
de carros já tinha ultrapassado o seu limite e eles queriam grampear sem dó nem
piedade.
O dono da caranga encostou e ficou olhando o soldado
se aproximar. Quando ele encostou na porta e pediu o documento, o motorista não
conseguiu conter a risada, e arrancou com a caranga acelerando até o talo.
Ainda viu o policial atordoado com a avenida totalmente livre à sua frente. O
vizinho da casa da esquina só balbuciava: “A minha mãe vai me matar”. No som tocava Ramones enquanto a menina no banco de trás enchia os olhos
de lágrimas. “Seu louco! Para essa porcaria agora! Seu babaca!”. Parece que a única pessoa
que estava gostando da farra era a menina do banco da frente. Ela sempre o
mantinha informado. “Olha a sua esquerda! Toma cuidado que eles estão chegando”. O dono da caranga
sorria com o pé no acelerador. Nunca tinha visto um carro tão valente. Por que mesmo
faltando várias peças, o danado parecia voar como um foguete. E foi assim até o
final.
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