Por: Robert Crumb |
A senha era 286, e no painel marcava 215. Sentei numa
cadeira próxima da porta. Abri o jornal na parte dos classificados. Folheei até
o fim do caderno. Depois fui na palavra cruzada. O painel continuou do mesmo
jeito, nem se mexeu. Quis ficar nervoso, mas poderia ser pior, então me
concentrei nas palavras. Num momento acabou a inspiração. Conjunto de trajes de
um espetáculo? 8 letras. 221 Deixa-me ver esse sudoku. Grau de dificuldade:
médio. Comecei eficiente, mas logo empaquei e desisti. Quando estiver
tranquilo retomo o jogo. Mais a frente sentou uma senhora com dois pirralhos.
Os moleques pareciam que estavam possuídos. Não paravam um segundo. 222 Retomei o sudoku. Esse número 7 deve caber aqui. Não olha o
painel! Espera mais um pouco. Ou melhor: esquece. Se concentra no jogo que a
sua hora vai chegar. Não é o 7. Tenta o 3. Aí só pode caber o 3, ora. Tá
desaprendendo a lógica. Os moleques começam a gritar. A senhora ficou nervosa.
223 Será que Jesus Cristo foi uma criança tranquila? E as suas traquinagens?
Nunca ouvi falar na infância dele. Mas provavelmente deve ter tomado algumas
chineladas do velho José. Vamos parar com esse barulho aí cambada. Sudoku. Nome
engraçado. Fale em voz alta no meio dessa gente. É melhor não. Senhor porque me
abandonastes?
Abaixo o jornal. E uma morena de saia curta entra na sala. Caminha
lentamente até o guichê, daí pega uma senha. Acho que essa lorota de horóscopo
deve ser verdade. “Acontecem casos que servem de exemplo espontâneo de
organização e progresso. Aproveite bem essas situações, elas passam rápido”.
230 Painel! Não precisa correr tanto. Agora está tudo nos conformes. A morena
puxa uma cadeira no melhor campo de visão da sala. Provavelmente Jesus Cristo
deve apanhado, ou pelo ao menos, tomado uma bronca. Ninguém cresce sem tomar um
sapo, ora. E a paixão? Deus do céu! Jesus amuado num canto por causa da gatinha da casa ao lado. Ninguém vive sem uma paixão, um sentimento que derruba a gente, joga
na lona, na sarjeta. Eu me apaixonaria por essa morena fácil. Um cara querendo
forçar a amizade foi lá e ofereceu uma senha. Ela se recusou, e disse que não
precisaria porque estava esperando uma pessoa. Já era camarada! A morena é difícil. Daí ela colocou um fone de ouvido. Qual a música? 257 O menino da bermuda
vermelha derruba a lixeira. O outro começa a reclamar que estava
demorando. A pobre senhora estava inquieta. Que belas pernas, morena. Cabelo
preto. Semblante calmo. Tava esperando uma pessoa, né. Mas por enquanto ninguém
no pedaço. Um cara desandou a tossir. Tirou a minha atenção. Dei outra olhada
na palavra cruzada, mas a morena ainda estava ali com o seu fone de ouvido
escutando um som, e com as mãos em movimentos sincronizados. Mulher quando sabe
que é gostosa, ela joga com a situação, e isso é bom. Deixa o ambiente melhor.
Se Jesus Cristo estivesse aqui era capaz dele sentir o baque também. 270
Imaginou? 6 letras. O que seria: imaginou com 6 letras?
A morena ajeitou a
saia. E fechou mais as pernas. Já não estava com o fone de ouvido. Mexeu no
celular. Amarrou o cabelo. Olha aquele pescoço! Mulher quando sabe que é
gostosa parece que faz questão de maltratar. Tô vendo que muita gente aqui –
inclusive eu – vai querer pegar outra senha pra não ter que ir embora cedo. 268
Os pirralhos, enfim, ficam quietos. Tem hora que tem que dar um tempo, senão a velha vai enlouquecer, porra. A senhora estava até mais feliz. E a morena de cabelo
amarrado que agora arruma a saia curta, e que também não dar mole pra ninguém
parece inquieta. Aumentem o ar condicionado. O calor faz a gente
pensar besteira. Embora ela não quisesse conversa, os seus gestos
pareciam falar o que a gente queria ouvir. Aí pegou o envelope e usou feito um
leque. 286 Paguei a conta. Ficou 5 centavos pro banco. De centavo em
centavo vocês devem fazer a festa. Cato o jornal, o recibo de pagamento, e vejo
ela de frente, ainda está lá: o fone, o seu rosto bonito com o semblante calmo, e as mãos com os movimentos discretos. Dou aquela última olhada nas suas belas pernas. Saia curta! Ganho o dia. Tem camarada de sorte, viu... Com uma morena dessa, o cara vai reclamar de quê?