O dia nublado deixa a cidade num tom sem graça. Dizem que
quando o céu está cinzento as pessoas ficam mais tristes. Decerto deve
acontecer algo dentro da gente que nos deixa meio embaçado, assim de saco cheio
e sem muita vontade pra esticar conversa ou qualquer coisa do tipo. Mas
independente de estar cinzento ou não tem momentos que é melhor ficar calado, e
quieto. Andei pensando que em outra vida eu deva ter sido mudo. Ou se houver
uma próxima encarnação talvez já esteja me preparando pra encarar essa
possibilidade. Mas em dias assim isso não faz diferença. Só um papo besta
comigo mesmo após trancar a porta. Pois é, de vez em quando me bate essa
tristeza cinzenta, e daí acho uma porcaria ter que ficar de papo furado. E isso causa ótimas reações. Acham que é má vontade. Não me preocupo com
o que vão pensar. Mas voltando em ser mudo, notei o casal gesticulando
fervorosamente.
Logo percebi que ela era muda. Será que também é surda? Talvez. Por que se fosse iria ser poupada da música que vinha do carro estacionado ao
lado. Infelizmente nós não conseguimos controlar o som que vem de fora. O
ouvido só descansa quando você dorme. Enquanto está acordado pode até tentar
ignorar essas músicas chatas, mas acaba sendo muito difícil. O gosto musical de
grande parte da população esta uma porcaria. Intragável. Fazer o quê, né?! Nesse dia cinza, e besta, me lembrei de quando
fiz amizade com dois cegos. Eles conheciam uma amiga minha, e ela ajudava os
camaradas a embarcarem no ônibus. Moravam longe pra caramba! Admirava a força
de vontade deles. Ela ficava lá ponto esperando até que os dois
fossem embora são e salvos. Nisso acabei ficando amigo deles também. Às vezes
acontecia do ônibus dela chegar mais cedo, e aí eu ficava lá com os dois falando umas bobagens. Os caras pegavam dois ônibus. Viam da escola na L2
sul e daí desciam nessa parada. Tinha um
que era mais calado, mas era gente boa. Infelizmente
não consigo me lembrar do nome dele. Tinha um jeito religioso na sua conversa. Eu
segurava a onda e não pegava tão pesado. Brincava só um pouco pra que ele
pudesse saber com quem estava lidando.
De vez em quando o seu ônibus chegava
primeiro e daí eu conversava com o outro cego. "Como é
viver sem conseguir enxergar?” “Uma merda: Rodrigo”. “Ah! Silva. Eu enxergo muito bem e
também acho a mesma coisa”. “Não se
compara, porra!”. “É verdade!”. O Silva tinha bastante senso de humor. E talvez
por isso que a gente se permitia: um sacanear o outro. O engraçado era a reação das
pessoas ao lado. Só porque o cara é cego, muita gente acha que temos que ter bastante
dó. Eles acham que os caras não conseguem se virar. Fazer as coisas sozinhos. Por isso que vem aquele
estranhamento bobo, aquela falta de jeito só porque conversamos como qualquer
amigo conversa numa roda de botequim. Muita gente ficava de cara feia por causa do nosso
papo. “Quer dizer que nesse fim de semana o doutor Silva foi no puteiro com os
primos?” “Bicho! Os desgraçados falaram que ia me levar pra um bar, e daí
quando percebi, o carro tinha pegado uma estrada de chão, então pensei: essa movimentação tá muito estranha. Quando chegamos lá, já comecei a escutar
umas risadinhas das meninas. Cara! Os meus primos não valem nada, bicho. Fecharam
o puteiro, e a gente ficou até tarde, foi bom demais, elas adoraram o ceguinho,
disseram que era diferente. Eu pedi para desligar a luz. Sugeri pra que elas descobrissem o que é não enxergar. Meu amigo, a mão boba comeu solta. Foi tão bom que tive vontade de morar lá pra
sempre.” “Vou te dizer um negócio: Silva, a minha amiga que vem aqui ajudar
vocês é mô gostosa”. “Rapaz, eu percebi pela voz dela, deve ser uma rainha”. “A
voz pode enganar, pô”. “Pra mim não engana, sou estudado no assunto”. “Perdeu a
visão como?” “Ah desde moleque sou assim, então não é nenhum problema, quer
dizer, é um problema porque me dá um trabalhão, né, ter que ficar pedindo uma
informaçãozinha que seja não é tão simples assim, só pelo timbre de voz da pessoa, já dá
pra saber com quem a gente tá lidando, mas foda-se”. Uma mocinha olhou pra
gente com uma cara de indiferença e foi para o outro lado. Fazer
concessão é ir até onde as pessoas se permitem chegar. O cego
crente só se permitia ir até certo ponto, e ele tem todo esse direito, pô. Não
seria eu que iria destruir aquele muro. Só o Silva que era mais despojado e a
gente ria à beça.
Certa vez me atrasei e não encontrei os dois. Até
esperei um pouco, mas já tinham ido embora. No outro dia os dois me disseram
que passaram por alguns problemas. Um embarcou no ônibus errado, e o outro
quase caiu na escada. Outra vez os dois estavam perdidos caminhando em direção
ao cemitério. Quando notei o erro, dei uma bela sacaneada. “Oh! Seus loucos! Já
querem ir pra cova? Estão indo pro cemitério. Peraí!” Aí fui lá e vim
auxiliando pela calçada. “Rodrigo! Meu amigo... É você?” “Sou eu, porra! Como
vocês vieram parar aqui?” “O infeliz do motorista largou a gente aqui em
cima, aí achei que o ponto estava na direção oposta”. “Sacanagem, mas vira essa bengala pra lá, pô”. “Tá com medo da bengala,
Rodrigão?”. “Vira esse troço pra lá!”. Outro dia vi que na escola deles lá na
L2 sul tem um projeto em que você pode ler voluntariamente qualquer tipo de
texto ou livro. Os exemplares em braile são restritos. Na verdade
eles ficam sem curtir muito texto bacana. Na reportagem mostrou uma mulher
lindíssima fazendo uma leitura, e o ceguinho estava feliz da vida. Não sei se
por causa do texto ou por causa dela. Que gata! Depois de ouvir do Silva que
pela voz, você consegue descobrir como é uma pessoa. Tenho certeza que o camarada
lá da reportagem tinha certeza da beldade que estava ao seu lado.
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