sexta-feira, 31 de agosto de 2012

Última Olhada

Por: Robert Crumb
A senha era 286, e no painel marcava 215. Sentei numa cadeira próxima da porta. Abri o jornal na parte dos classificados. Folheei até o fim do caderno. Depois fui na palavra cruzada. O painel continuou do mesmo jeito, nem se mexeu. Quis ficar nervoso, mas poderia ser pior, então me concentrei nas palavras. Num momento acabou a inspiração. Conjunto de trajes de um espetáculo? 8 letras. 221 Deixa-me ver esse sudoku. Grau de dificuldade: médio. Comecei eficiente, mas logo empaquei e desisti. Quando estiver tranquilo retomo o jogo. Mais a frente sentou uma senhora com dois pirralhos. Os moleques pareciam que estavam possuídos. Não paravam um segundo. 222 Retomei o sudoku. Esse número 7 deve caber aqui. Não olha o painel! Espera mais um pouco. Ou melhor: esquece. Se concentra no jogo que a sua hora vai chegar. Não é o 7. Tenta o 3. Aí só pode caber o 3, ora. Tá desaprendendo a lógica. Os moleques começam a gritar. A senhora ficou nervosa. 223 Será que Jesus Cristo foi uma criança tranquila? E as suas traquinagens? Nunca ouvi falar na infância dele. Mas provavelmente deve ter tomado algumas chineladas do velho José. Vamos parar com esse barulho aí cambada. Sudoku. Nome engraçado. Fale em voz alta no meio dessa gente. É melhor não. Senhor porque me abandonastes? 

Abaixo o jornal. E uma morena de saia curta entra na sala. Caminha lentamente até o guichê, daí pega uma senha. Acho que essa lorota de horóscopo deve ser verdade. “Acontecem casos que servem de exemplo espontâneo de organização e progresso. Aproveite bem essas situações, elas passam rápido”. 230 Painel! Não precisa correr tanto. Agora está tudo nos conformes. A morena puxa uma cadeira no melhor campo de visão da sala. Provavelmente Jesus Cristo deve apanhado, ou pelo ao menos, tomado uma bronca. Ninguém cresce sem tomar um sapo, ora. E a paixão? Deus do céu! Jesus amuado num canto por causa da gatinha da casa ao lado. Ninguém vive sem uma paixão, um sentimento que derruba a gente, joga na lona, na sarjeta. Eu me apaixonaria por essa morena fácil. Um cara querendo forçar a amizade foi lá e ofereceu uma senha. Ela se recusou, e disse que não precisaria porque estava esperando uma pessoa. Já era camarada! A morena é difícil. Daí ela colocou um fone de ouvido. Qual a música? 257 O menino da bermuda vermelha derruba a lixeira. O outro começa a reclamar que estava demorando. A pobre senhora estava inquieta. Que belas pernas, morena. Cabelo preto. Semblante calmo. Tava esperando uma pessoa, né. Mas por enquanto ninguém no pedaço. Um cara desandou a tossir. Tirou a minha atenção. Dei outra olhada na palavra cruzada, mas a morena ainda estava ali com o seu fone de ouvido escutando um som, e com as mãos em movimentos sincronizados. Mulher quando sabe que é gostosa, ela joga com a situação, e isso é bom. Deixa o ambiente melhor. Se Jesus Cristo estivesse aqui era capaz dele sentir o baque também. 270 Imaginou? 6 letras. O que seria: imaginou com 6 letras? 

A morena ajeitou a saia. E fechou mais as pernas. Já não estava com o fone de ouvido. Mexeu no celular. Amarrou o cabelo. Olha aquele pescoço! Mulher quando sabe que é gostosa parece que faz questão de maltratar. Tô vendo que muita gente aqui – inclusive eu – vai querer pegar outra senha pra não ter que ir embora cedo. 268 Os pirralhos, enfim, ficam quietos. Tem hora que tem que dar um tempo, senão a velha vai enlouquecer, porra. A senhora estava até mais feliz. E a morena de cabelo amarrado que agora arruma a saia curta, e que também não dar mole pra ninguém parece inquieta. Aumentem o ar condicionado. O calor faz a gente pensar besteira. Embora ela não quisesse conversa, os seus gestos pareciam falar o que a gente queria ouvir. Aí pegou o envelope e usou feito um leque. 286 Paguei a conta. Ficou 5 centavos pro banco. De centavo em centavo vocês devem fazer a festa. Cato o jornal, o recibo de pagamento, e vejo ela de frente, ainda está lá: o fone, o seu rosto bonito com o semblante calmo, e as mãos com os movimentos discretos. Dou aquela última olhada nas suas belas pernas. Saia curta! Ganho o dia. Tem camarada de sorte, viu... Com uma morena dessa, o cara vai reclamar de quê? 

terça-feira, 28 de agosto de 2012

A todo momento


E calculou o que deveria fazer. Na rua mudou o rumo. Antes quis voltar, mas foi em frente. E esqueceu. Na hora de pagar a conta acabou a energia. Em poucos minutos voltou. Um rosto mal encarado passou do seu lado esquerdo a cinco, ou três minutos atrás. Mas agora é a moça do caixa que tem um sorriso calmo pelo agradecimento da compra. O solo de piano vem novamente com a sua base lenta dizendo que ainda está por perto. A música é uma velha conhecida. Insistentemente vai do início até o refrão. Depois volta e começa de novo. E de cada passo ao que é apresentado, a combinação talvez estivesse em boa companhia. A movimentação ao redor ainda é calma. Tem somente a voz de algumas pessoas. Mas o piano quer ficar mais. Como se assoprasse ao pé do ouvido algo não muito importante. Talvez alguma coisa que não fosse pra ser encarada com tanta veemência. E a música ficou assim durante um tempo. Parecia um disco furado. Não dava para cantá-la até o fim porque era difícil. Não tinha decorado. E quando ela já não estava tão bem acomodada foi embora pra que se pudesse continuar o dia. 

sábado, 25 de agosto de 2012

Dica pro fim de semana


Saiu a 5 edição da Revista Clitóris. Ela é organizada pela Camila F. que também acabou de lançar o seu livro de estreia – Socos no Escuro (mais informação: no blog). E nessa edição você vai encontrar textos de Reinaldo Moraes, Júlio Freitas, Teresa Lisieux, Bruno Bandido, Alcantra Nunes, Bernardo Mozelli, Camila F., Mário Bortolotto, Luana Vignon, Adriana Brunstein, Juliana Gola, Beatriz Provasi, Leandro Afonso. Então se esta de bobeira, e sem fazer nada, aí vai o link: aqui

sexta-feira, 24 de agosto de 2012

Quarta mini-brake


Quarta-feira passada fui no bar do Oli (bom, eu chamo ele assim), e aí na sequência veio cerveja nacional, cerveja importada, e o papo foi longe. De repente o meu irmão foi embora com a namorada dele, o meu amigo Alan também se mandou, o Chapa caiu fora (aí meu camarada, a gaita daquele som que você me mostrou é muito bacana, tem um pedal naquele timbre), o Gabriel catou a moto dele e também caiu fora, e eu fiquei sozinho lá conversando com a galera que tinha restado no bar. Peguei uma cerveja preta e encostei no balcão. Nesse momento tocava Blues Etílicos no Dvd. Aí o Oli me mostrou o som do Roy Buchanan, e de cara já gostei. Como não estava com vontade de sair dali, esse som só foi a deixa pra ficar curtindo, e não ir embora. O frio da boca da madrugada nem incomodou tanto assim. Daí assisti o show inteiro no Dvd. Não conhecia esse bluseiro. Valeu pela dica Oli. O cara é bom pra caralho. E a cerva estava no jeito. Play

Pneumotórax da Alma

Se queres sentir a felicidade de amar, esquece a tua alma
A alma é que estraga o amor
Só em Deus ela pode encontrar satisfação
Não noutra alma
Só em Deus – ou fora do mundo
As almas são incomunicáveis
Deixa o teu corpo entender-se com outro corpo
Porque os corpos se entendem, mas as almas não
(Manuel Bandeira)

quinta-feira, 23 de agosto de 2012

Viagem ao fim da noite


Nesse caminho a distância parece menor. O telefone começa a vibrar no bolso da calça, e o carro da polícia faz a curva em frente ao colégio. Um número estranho. Quando vou atender a ligação cai. Procuro um cachorro quente. Mudo de avenida. As chances de se encontrar algo pra comer são maiores por aqui. Fechado. Fechado. Opa! Lá na frente parece ter um hot dog. Fechado também. Cidade fantasma. Até as luzes dos apartamentos estão apagadas. Nenhum ladrão. Nenhum flanelinha. Ninguém na rua. Tem um bar ali na esquina. Quem não tem cachorro quente caça com churrasquinho de gato. E aí meu amigo vai um espetinho aí? Sim. Bebe alguma coisa? Cerveja. É só dá um tempo aqui na brasa que vai ficar no jeito. Hoje o movimento tá devagar, né. Tá. Deve ser por causa do frio. Passa um homem com capuz fazendo cooper. Chega uma mulher bastante arrumada, e também pede um churrasquinho. Ela começa a conversar com o dono do estabelecimento. Me olha e cumprimenta. Ofereço a cerveja. Não! Obrigada. O dono do estabelecimento me entrega o petisco. Tenho a impressão de que a minha presença agora começa a incomodar. Ela fica perto de mim. O dono puxa papo. Só de sacanagem eu elogio a carne, e ela começa a conversar comigo. Opa! A tática funciona. Mas logo desvio o assunto a meu favor. Qualquer vacilo, já era. Só que aí o porra do churrasquinho tenta manter a situação sob controle comentando sobre a qualidade do espetinho. Penso que o animal deve ter pedigree. E vou te contar um negócio: quando um rabo de saia pinta na área em fim de noite ninguém quer dar o braço a torcer, a briga vai longe. Até os vendedores de churrasquinho se esquecem de que o cliente sempre tem razão. Uma fêmea no pedaço muda qualquer ideia precipitada. Do assunto mais bobo ao mais difícil que for. Peço mais uma cerveja, e mando assar outro pedaço de carne. Afinal de contas, como dizem alguns amigos: a noite é longa.

quarta-feira, 22 de agosto de 2012

O texto que você me pediu


Encontrei aquele trecho que você comentou comigo no fim da semana passada. É que de vez em quando topo com algum livro (principalmente de biblioteca) que já chega com frases, ou parágrafos sublinhados. E não gosto de pegar livro com aqueles rabiscos por tudo canto é canto. Desvia a leitura. É como ir numa exposição e antes de você olhar os quadros, alguém já está pontuando o que devemos pensar. Uma exposição que se preze o visitante aprecia primeiro e depois o curador faz as considerações finais. Por que se acontecer o contrário ele vai matar o pensamento de quem está ali na frente da tela, ou vai influenciar. Sinto a mesma coisa quando abro um livro riscado. Então quando topo com algum exemplar desse jeito dou uma olhada até o fim só pra saber o que aquela pessoa achou importante. Só que aí também tem um problema: não dá pra saber se foi somente uma pessoa que fez aquilo até porque muita gente tem esse hábito de riscar livro. Um exemplar pode ser massacrado até por várias pessoas ao mesmo tempo. Imagina aqueles trabalhos de colégio que são feitos em grupo? Nem o encadernamento escapa. É aquela orgia dos diabos. Tem alguns que a capa já vem em petição de miséria. Às vezes até sem páginas importantes. Ali você percebe que meteram a mão com gosto. Além de chegar com vários trechos selecionados, você encontra resto de comida, baba, palito de dente, resto de unha, marca de beijo com batom, recadinho sacana, recado de amor. Vejo que não vai demorar muito pra alguém encontrar até camisinha usada. Argh! É aquela balbúrdia. Por que muita gente se esquece de que livro de biblioteca é público. Então às vezes quando topo com uma parte grifada e sei que eu também teria vontade de sublinhar aquela parte, penso que aí temos somente uma intersecção. Mas não riscaria um livro que não é meu, ora. Primeiro por consideração a ele, e por quem vai procurá-lo futuramente. A ideia que tenho em comum com quem fez aquilo é somente no raciocínio. Na maneira de pensar. Aquilo me chamou a atenção. E daí fica aquela pulga atrás da orelha. Quantas formas de pensar existem no mundo? Impossível saber. Mas as correntes estão todas aí em filosofias, religiões, psicologias, culturas. O pensamento individual, aquele único, talvez não exista cristalino, puro. Já existiu? O que penso é exclusivamente meu? Sou dono do que penso? Ah! O Google tem todas as respostas, né. O que mais se vê na vida são opiniões, e visões disso, daquilo. Até o cara conseguir jogar a tinta na parede pode demorar bastante. O que não pode acontecer também. Mas da pulga vamos para o carrapato que adora ficar escondido ali no lombo, mamando um sanguinho: quantas formas de pensamento estão no topo do ranking da vida em geral? E quantos que estão inseridos em determinada linha de pensamento conseguem usufruir da sua individualidade? Conseguem pensar o que já está mais do que evidente, e são donos da sua própria cachola? O Sartre diz que primeiro o homem tem que se encontrar pra depois se definir. O problema é achar que isso funciona num ciclo fechado. Acredito mais nos meus momentos desencontros, principalmente, quando topo o pé na quina de uma cadeira. O que fazer com a informação que você recebeu: passar pra frente ou pensar e encontrar o seu raciocínio individual sobre ela. Hum?! O caminho mais fácil é passar a batata quente. Até essa palavra escolha anda meio sem graça.  Mas aí vão funcionar como papagaios, quer dizer, meros divulgadores de ideias que não são suas, mas de professores, livros, revistas, jornais, igrejas, botecos, supermercados... Pensar é algo que nos engana o tempo todo. Tudo bem: acredito no que li e quero compartilhar, sem problemas. É porque tem hora que nos achamos muitos originais, mas de repente: bum! Já era! Certa vez ao terminar um livro tive a impressão que me vi ali naquelas palavras. Só que aconteceu algo bom. Além de me identificar, teve um instante que discordei com algumas coisas, tive a sensação de que estava começando a encontrar o meu jeito de raciocinar, e me entender um pouco também. Agora, por exemplo, voltei a estudar teoria musical, especificamente: partitura. E se você for analisar, cada uma tem uma fórmula. Se você descobrir como funciona, já esta com meio caminho andado. Mas aí é que tá. Se existe uma forma de manejo nessa informação, existe outra coisa que se chama estilo. Estilo pode até ser aprendido, mas se a pessoa tiver atenta aos seus sentimentos e emoções pode saber que isso vai durar pouco.  A teoria musical já existe há milênios. Talvez se eu estudasse sem ler nada somente com o instrumento na mão, encontraria os mesmos resultados, mas não poderia achar que estava criando nada. Por isso que a teoria é importante. Para me fornecer as ferramentas. Os livros estão com essas ferramentas. Quando alguém está ensinando determinado tema, o ouvinte vai ter que sacar que além daquilo que chega como teoria, o conteúdo também surge como prática. Dê uma olhada de fora. Alguém só ensina como manejar algo conforme o seu estilo. E o complicado é que quem está na condição de aprendiz tem hora que se esquece de ir atrás do seu próprio estilo, e prefere reproduzir o que aparece sem ao menos tentar achar o seu jeito próprio de fazer aquilo. Talvez isso aconteça por falta de experiência, e é até desculpável, mas às vezes você vê que a pessoa não busca o seu estilo por puro comodismo, ou por medo de cometer um erro. Se desprender e caminhar com os próprios recursos exige responsabilidade, e até mesmo irresponsabilidade. Uma hora ou outra é inevitável enfiar a cara na parede. Se você conseguir sair dessa, pelo ao menos, vai conhecer o efeito nítido de um bom estrago.

segunda-feira, 20 de agosto de 2012

Olha a escada!


O dia nublado deixa a cidade num tom sem graça. Dizem que quando o céu está cinzento as pessoas ficam mais tristes. Decerto deve acontecer algo dentro da gente que nos deixa meio embaçado, assim de saco cheio e sem muita vontade pra esticar conversa ou qualquer coisa do tipo. Mas independente de estar cinzento ou não tem momentos que é melhor ficar calado, e quieto. Andei pensando que em outra vida eu deva ter sido mudo. Ou se houver uma próxima encarnação talvez já esteja me preparando pra encarar essa possibilidade. Mas em dias assim isso não faz diferença. Só um papo besta comigo mesmo após trancar a porta. Pois é, de vez em quando me bate essa tristeza cinzenta, e daí acho uma porcaria ter que ficar de papo furado. E isso causa ótimas reações. Acham que é má vontade. Não me preocupo com o que vão pensar. Mas voltando em ser mudo, notei o casal gesticulando fervorosamente. 

Logo percebi que ela era muda. Será que também é surda? Talvez. Por que se fosse iria ser poupada da música que vinha do carro estacionado ao lado. Infelizmente nós não conseguimos controlar o som que vem de fora. O ouvido só descansa quando você dorme. Enquanto está acordado pode até tentar ignorar essas músicas chatas, mas acaba sendo muito difícil. O gosto musical de grande parte da população esta uma porcaria. Intragável. Fazer o quê, né?!  Nesse dia cinza, e besta, me lembrei de quando fiz amizade com dois cegos. Eles conheciam uma amiga minha, e ela ajudava os camaradas a embarcarem no ônibus. Moravam longe pra caramba! Admirava a força de vontade deles. Ela ficava lá ponto esperando até que os dois fossem embora são e salvos. Nisso acabei ficando amigo deles também. Às vezes acontecia do ônibus dela chegar mais cedo, e aí eu ficava lá com os dois falando umas bobagens. Os caras pegavam dois ônibus. Viam da escola na L2 sul e daí desciam nessa parada.  Tinha um que era mais calado, mas era gente boa. Infelizmente não consigo me lembrar do nome dele. Tinha um jeito religioso na sua conversa. Eu segurava a onda e não pegava tão pesado. Brincava só um pouco pra que ele pudesse saber com quem estava lidando. 

De vez em quando o seu ônibus chegava primeiro e daí eu conversava com o outro cego. "Como é viver sem conseguir enxergar?” “Uma merda: Rodrigo”. “Ah! Silva. Eu enxergo muito bem e também acho a mesma coisa”.  “Não se compara, porra!”. “É verdade!”. O Silva tinha bastante senso de humor. E talvez por isso que a gente se permitia: um sacanear o outro. O engraçado era a reação das pessoas ao lado. Só porque o cara é cego, muita gente acha que temos que ter bastante dó. Eles acham que os caras não conseguem se virar. Fazer as coisas sozinhos. Por isso que vem aquele estranhamento bobo, aquela falta de jeito só porque conversamos como qualquer amigo conversa numa roda de botequim. Muita gente ficava de cara feia por causa do nosso papo. “Quer dizer que nesse fim de semana o doutor Silva foi no puteiro com os primos?” “Bicho! Os desgraçados falaram que ia me levar pra um bar, e daí quando percebi, o carro tinha pegado uma estrada de chão, então pensei: essa movimentação tá muito estranha. Quando chegamos lá, já comecei a escutar umas risadinhas das meninas. Cara! Os meus primos não valem nada, bicho. Fecharam o puteiro, e a gente ficou até tarde, foi bom demais, elas adoraram o ceguinho, disseram que era diferente. Eu pedi para desligar a luz. Sugeri pra que elas descobrissem o que é não enxergar. Meu amigo, a mão boba comeu solta. Foi tão bom que tive vontade de morar lá pra sempre.” “Vou te dizer um negócio: Silva, a minha amiga que vem aqui ajudar vocês é mô gostosa”. “Rapaz, eu percebi pela voz dela, deve ser uma rainha”. “A voz pode enganar, pô”. “Pra mim não engana, sou estudado no assunto”. “Perdeu a visão como?” “Ah desde moleque sou assim, então não é nenhum problema, quer dizer, é um problema porque me dá um trabalhão, né, ter que ficar pedindo uma informaçãozinha que seja não é tão simples assim, só pelo timbre de voz da pessoa, já dá pra saber com quem a gente tá lidando, mas foda-se”. Uma mocinha olhou pra gente com uma cara de indiferença e foi para o outro lado. Fazer concessão é ir até onde as pessoas se permitem chegar. O cego crente só se permitia ir até certo ponto, e ele tem todo esse direito, pô. Não seria eu que iria destruir aquele muro. Só o Silva que era mais despojado e a gente ria à beça. 

Certa vez me atrasei e não encontrei os dois. Até esperei um pouco, mas já tinham ido embora. No outro dia os dois me disseram que passaram por alguns problemas. Um embarcou no ônibus errado, e o outro quase caiu na escada. Outra vez os dois estavam perdidos caminhando em direção ao cemitério. Quando notei o erro, dei uma bela sacaneada. “Oh! Seus loucos! Já querem ir pra cova? Estão indo pro cemitério. Peraí!” Aí fui lá e vim auxiliando pela calçada. “Rodrigo! Meu amigo... É você?” “Sou eu, porra! Como vocês vieram parar aqui?” “O infeliz do motorista largou a gente aqui em cima, aí achei que o ponto estava na direção oposta”. “Sacanagem, mas vira essa bengala pra lá, pô”. “Tá com medo da bengala, Rodrigão?”. “Vira esse troço pra lá!”. Outro dia vi que na escola deles lá na L2 sul tem um projeto em que você pode ler voluntariamente qualquer tipo de texto ou livro. Os exemplares em braile são restritos. Na verdade eles ficam sem curtir muito texto bacana. Na reportagem mostrou uma mulher lindíssima fazendo uma leitura, e o ceguinho estava feliz da vida. Não sei se por causa do texto ou por causa dela. Que gata! Depois de ouvir do Silva que pela voz, você consegue descobrir como é uma pessoa. Tenho certeza que o camarada lá da reportagem tinha certeza da beldade que estava ao seu lado.

quinta-feira, 16 de agosto de 2012

Todo dia ela faz tudo sempre igual


Abri o olho e a ressaca meu deu o primeiro e único bom dia da manhã. Quis fechar novamente. Dormir um sono tranquilo. Mas comecei a passar mal. Pra que misturar as bebidas? Antes tivesse ficado só na cevada. Estava tudo certo. O vizinho inventou de arrumar alguma coisa lá na casa dele, e daí começou um barulho infernal de furadeira. O que você tem tanto que ajeitar, hein, cara?! Me veio a imagem de um filme em preto e branco, e seguida a imagem de uma bela mulher. Ela usava sutiã e estava sem calçinha. Mulher somente de sutiã, e sem nada da cintura pra baixo é o melhor remédio contra a ressaca. A beleza mais terna. Fiquei pensando nisso enquanto me arrastava até o chuveiro. Por que fazer as coisas habituais como se fosse um robô? Como levantei? A preguiça é a maior virtude  de um ser humano. Essa força me deixa sem resposta. Eu não estava afim de tomar banho. Vê o que tinha que resolver no dia. Mas esse mal estar é brabo, não deixa passar por menos. Ela veio novamente na imagem, e nesse momento já estava sem o sutiã, e eu acho que melhorei um pouco por que tinha um sorriso cínico na minha cara em frente ao espelho do banheiro.

terça-feira, 14 de agosto de 2012

Socos no escuro


Alguns dias sem andar por aqui, né. Tô meio enrolado. Por isso que esse caneco anda com a cerveja esquentando. Mas agora andei conferindo alguns blogs, e tem uns lances bacanas. No do Bruno Bandido, você vai encontrar um post sobre o livro de estreia da Camila Fraga. Muito bacana! Vou providenciar o meu. Deve estar bom pra caralho. É só conferir: aqui. O blog da Camila F. também está aí do lado, ou se você preferir cortar caminho: aqui. Depois pinto na área. 

Livro de estreia da Camila F.

quinta-feira, 9 de agosto de 2012

Pra arrematar aí vai 2 poemas do Hank


Solucionando
Charles Bukowski

Van Gogh cortou a própria orelha e
a deu para uma
prostituta
que com
nojo
extremo
atirou-a ao vento.
Van, putas não querem
orelhas
elas querem
dinheiro.
Acho que agora sei por que
você foi um grande
pintor: você
não compreendia
as outras coisas da vida.

A Geração Perdida
Charles Bukowski

tava lendo um livro sobre uma literata rica
dos anos vinte e seu marido que
beberam, comeram e farrearam por toda a
Europa
encontrando Pound, Picasso, A. Huxley, Lawrence, Joyce,
F. Scott, Hemingway, muitos
outros;
os famosos eram como brinquedinhos preciosos para
eles,
e pelo que li
os famosos se permitiram tornar
brinquedinhos preciosos.
durante o livro inteiro
esperei pra que só um dos famosos
falasse a essa literata rica e seu
marido literato rico pra
que se mandassem
mas, aparentemente, nenhum deles o
fez.
Em vez disso foram fotografados com a moça
e seu marido
em várias praias
com cara de inteligente
como se tudo isso fosse parte do ato
da Arte.
talvez a mulher e o marido
serem donos de uma imprensa chique
tivesse algo a ver
com isso.
e foram todos fotografados juntos
em festas
ou do lado de fora da livraria da Sylvia Beach.
é verdade que muitos deles foram
artistas ótimos e/ou originais,
mas tudo parecia um negócio tão precioso
esnobe,
e o marido finalmente cometeu seu
tão ameaçado suicídio
e a mulher publicou um de meus primeiros
contos nos anos
40 e agora
já morreu, mas
eu não consigo perdoar nenhum dos dois
por suas vidas ricas idiotas
e não consigo perdoar seus brinquedinhos preciosos
também
por terem sido
isso.

quarta-feira, 8 de agosto de 2012

Brasília é uma festa

No centro cultural do banco do Brasil em São Paulo começou uma exposição de grandes mestres da pintura. Sacanagem dessa mostra não passar por Brasília. Parece que depois de Sampa só vai para o Rio de Janeiro e daí volta pra França. São 85 pinturas do Museu d’Orsay. Monet, Cézanne, Van Gogh, e outros. Pra quem gosta de pintura é imperdível. Os quadros foram divididos em sete blocos. Três deles ("Paris é uma Festa", "A Vida Urbana e Seus Atores" e "Paris: A Cidade Moderna") mostram a cena da virada do século 19 pro século 20, e os outros quatro ("Fugir da Cidade", "Convite à Viagem", "Na Bretanha" e "A Vida Silenciosa") tratam da vida no campo.  Será que tem algum do Jules Pascin? Se tiver deve estar no bloco de Paris é uma Festa. Esse título foi roubado do livro do Hemingway.  Livro em que ele comenta sobre a tal geração perdida, e do tempo que viveu por lá. O legal é a análise de como a sua escrita floresceu, e também de como um escritor deve está pronto. “Se estes cretinos gostaram do que escrevi, devo ter cometido um erro qualquer”.  O lance é que nesse tempo vários desses artistas era um bando de quebrados. E daí ele conta a sua trajetória por lá, os papos, os encontros nos bares, restaurantes, ruas. No momento em que encontra o Pascin é engraçado. O velho pintor está bebaço com duas modelos numa mesa, e de repente tenta jogar uma na mão do Hemingway. Ele despista, e pede uma cerveja, mas fica ali sentado escutando o papo dos três. O Pascin era boêmio. Passava o dia nas telas e depois ia tomar uns tragos no bar. Provavelmente deve ter alguma de sua autoria nessa exposição. Pena que não vai passar por Brasília. A festa aqui é outra, tem viés político. Quer dizer: política manda em qualquer lugar, e em qualquer época. O conchavo sempre espreita, mas o que me intriga é que acabou o expediente, a patota inteirinha corre para um restaurante famoso aqui da capital.  E estão todos lá: advogados, políticos, musas... Nesses últimos dias, por exemplo, teve até ex-senador cantando Frank Sinatra. Pelo o que parece a festa continua até tarde. 

Me salva aí Pascin:




sexta-feira, 3 de agosto de 2012

A menina que adora fazer perguntas

- Você já viu que pouca gente escuta um disco inteiro?
- Já.
- A internet acabou com o conjunto da obra.
- Acho que não. Eu ainda escuto.
- Nem me lembro quando escutei um disco do início ao fim de algum artista que eu gosto.
- A Patti Smith lançou um disco novo aí. Se chama Banga. Acabou de sair.
- Sério. Vou escutar na íntegra.
- Ainda não escutei mas deve estar bacana.
- Vai... Fala a verdade! Você ainda escuta um disco inteiro? 
- Ué por que não ia escutar?
- Então fala um aí?
- Vou falar dois.
- Hum...
- Um pra você relaxar. Pra quando você quiser ficar de bobeira deitada na cama, e não estiver afim de conversar com ninguém: play e outro é pra atazanar os vizinhos, pra você ficar agitada: play

quinta-feira, 2 de agosto de 2012

quarta-feira, 1 de agosto de 2012

Mais um poema do caderno da estante


O músico deveria
Ter a realidade do mudo
A voz do gago
Ou até mesmo a imaginação do cego
Cantar a música do surdo
Imitar a dança do manco
Ou até mesmo a agilidade do aleijado
Mostrar o que mais tem medo
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Gabis & Gabrielas

Já tinha algum tempo que o Marcelo Mirisola não escrevia no Congresso em Foco. Publicou um texto no dia 28/07/2012. Dá uma curtida aí. Segue abaixo:
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Uma pomba-do-mato decola a partir da copa de um abacateiro

Marcelo Mirisola

A iminência de uma guerra nuclear no Oriente Médio, a partir de Damasco. A Europa – como diz meu amigo Paulinho de Tharso – pronta para virar geléia. O colapso xavecando o quarto cavaleiro que roda bolsinha nas esquinas de Wall Street: já fizeram contato visual, e parece que vai rolar um programinha barra-pesada. Eu aqui, do alto dessa colina sem nenhuma vontade de dichavar listas nem de fazer qualquer tipo de associação, esgotado. Como se Damasco já tivesse ido – a minha foi – pro beleléu. Se tenho algum sentimento autêntico, é a inveja de mim mesmo, ou melhor: invejo aquilo que eu fui quando, na época em que eu era a bola da vez, me sabotei com tanto empenho e selvageria. Os suplementos culturais do país – jornais, revistas, tevês, Gabis & Gabrielas, etc – me acusavam de ser um gênio. Depois de passar a vida sendo tratado como um imbecil, nada mal. Embarquei. Foi bom. Foi ótimo. Só um imbecil ou um gênio de verdade para não vestir a carapuça. Conheci dezenas de pessoas em questão de poucos meses, fiz um milhão de amigos e passei a acreditar que, além de gênio, eu também devia ser um cara legal.
A função precípua de um gênio é realizar desejos. Fui cobrado. E aí descobriram que eu não era nem um gênio nem um imbecil. Me diverti um bocado, e não desperdicei a oportunidade de realizar meus desejos. Zoei demais. Somente sendo um filhodaputa – acredito nisso –, eu não perderia minha alma de uma vez por todas. Hoje estou sozinho. Dei de ombros para a genialidade que não me dizia respeito e, agora, depois de dez anos, percebo que fui muito inocente e ao mesmo tempo muito arrogante: apostei que o talento prevaleceria em detrimento do jogo sujo. Claro não.
Além do jogo sujo, o ramerrame de sempre e, da minha parte, a preguiça de acompanhar a história se repetir ao som de Chitãozinho & Xororó. Francisco de Assis voltou desiludido da Síria, Paulo de Tarso se converteu a caminho de Damasco. Eu sei que a roda do mundo vai girar, talvez gire a partir de uma hecatombe. Se eu fosse um megalômano diria que contribuí significativamente para colocar mais um graveto de lenha nesse reator nuclear, como não é 100% o caso, deponho a favor da vida depois da morte, e acredito na vida antes da morte também. Otimista ? Sei lá, eu escrevi meus livros. E chamo a lição de casa de vingança.
Cheguei onde queria. À guisa de testamento e roupa suja lavada em público, queria pedir desculpas aos inocentes que destruí no meio do caminho, aos filhosdaputa, porém, aos que mereceram, eu os destruiria e os amaria irrestritamente se fosse o caso, outras mil vezes, portanto fodam-se. O balanço é um desastre, vá lá, mas eu fiz a coisa que devia ser feita, My Way numa versão – muitas vezes – redondamente enganada. Arrependimento nenhum. Assino embaixo de todos os minutos que permaneci pasmo, pelo transe e pelo tesão viveria tudo outra vez.
Um muro de diamantes coberto de ervas daninhas, e daí? Quando rezo o Pai Nosso – difícil me livrar dessa mania –, não me atenho mais ao esforço sobrenatural de perdoar nem de ser perdoado, às vezes não consigo passar daquele trecho que diz para ser feita a vontade Dele, assim na terra como no céu. Ou seja. Aguardo. Persisto na espera, e assimilo apenas a parte mais dolorida da lição. Perdi? Se perdi, foi porque voltei para casa de mãos abanando e braços abertos. Não encontrei a garotinha de olhos tristes e amendoados que chorava por mim na porta da escola. Vou fazer de conta que ela é o bem que vai me cobrir e me enterrar junto às outras maldições, e desse modo me reconciliarei com os quarenta e seis anos que a esperei. A verdade, filha, é que não floresci. Escolhi ser o pesticida, e você naturalmente não vingou, eu bem que tentei, mesmo sabendo que minha vocação era o deserto, acreditei que podia fertilizar, se não fosse assim, sucumbiria ao meu próprio veneno e não conseguiria sequer enganar a mim mesmo, e isso, enganar a si mesmo e à distinta platéia, ao menos nisso, logrei êxito, meus poucos leitores são testemunhas dos engodos que, desde meu primeiro livro, eu empenhei como se fossem a última vez. Dessa vez é.
Depois de tudo – vejam só –, o máximo que consegui foi chegar até o alto dessa colina e pedir pelo amor de Deus. Ah, daqui de cima eu vislumbro o desastre que foi minha vida. Talvez tenha valido a pena. Quem disse que uma vida não valeu a pena somente porque não deu certo? Daqui de cima a vista é magnífica, o ar é puro e quando eu gritar pelo amor de Deus pela última vez, tenho certeza que uma pomba-do-mato vai decolar a partir da copa de um abacateiro. Deixo os direitos autorais dos meus livros para a Apae. Não tenho mais nada a dizer nem coisa alguma a acrescentar. Ninguém ia dar bola mesmo. Iguais a eles, têm mais de milhão. Iguais a mim, nem tanto.
Qual a diferença entre um sujeito se jogar dentro de um caminhão de lixo (Sergio Leone, Era uma Vez na América), e um xarope esperar a próxima pomba-do-mato decolar a partir da copa de um abacateiro?