segunda-feira, 20 de agosto de 2012

Olha a escada!


O dia nublado deixa a cidade num tom sem graça. Dizem que quando o céu está cinzento as pessoas ficam mais tristes. Decerto deve acontecer algo dentro da gente que nos deixa meio embaçado, assim de saco cheio e sem muita vontade pra esticar conversa ou qualquer coisa do tipo. Mas independente de estar cinzento ou não tem momentos que é melhor ficar calado, e quieto. Andei pensando que em outra vida eu deva ter sido mudo. Ou se houver uma próxima encarnação talvez já esteja me preparando pra encarar essa possibilidade. Mas em dias assim isso não faz diferença. Só um papo besta comigo mesmo após trancar a porta. Pois é, de vez em quando me bate essa tristeza cinzenta, e daí acho uma porcaria ter que ficar de papo furado. E isso causa ótimas reações. Acham que é má vontade. Não me preocupo com o que vão pensar. Mas voltando em ser mudo, notei o casal gesticulando fervorosamente. 

Logo percebi que ela era muda. Será que também é surda? Talvez. Por que se fosse iria ser poupada da música que vinha do carro estacionado ao lado. Infelizmente nós não conseguimos controlar o som que vem de fora. O ouvido só descansa quando você dorme. Enquanto está acordado pode até tentar ignorar essas músicas chatas, mas acaba sendo muito difícil. O gosto musical de grande parte da população esta uma porcaria. Intragável. Fazer o quê, né?!  Nesse dia cinza, e besta, me lembrei de quando fiz amizade com dois cegos. Eles conheciam uma amiga minha, e ela ajudava os camaradas a embarcarem no ônibus. Moravam longe pra caramba! Admirava a força de vontade deles. Ela ficava lá ponto esperando até que os dois fossem embora são e salvos. Nisso acabei ficando amigo deles também. Às vezes acontecia do ônibus dela chegar mais cedo, e aí eu ficava lá com os dois falando umas bobagens. Os caras pegavam dois ônibus. Viam da escola na L2 sul e daí desciam nessa parada.  Tinha um que era mais calado, mas era gente boa. Infelizmente não consigo me lembrar do nome dele. Tinha um jeito religioso na sua conversa. Eu segurava a onda e não pegava tão pesado. Brincava só um pouco pra que ele pudesse saber com quem estava lidando. 

De vez em quando o seu ônibus chegava primeiro e daí eu conversava com o outro cego. "Como é viver sem conseguir enxergar?” “Uma merda: Rodrigo”. “Ah! Silva. Eu enxergo muito bem e também acho a mesma coisa”.  “Não se compara, porra!”. “É verdade!”. O Silva tinha bastante senso de humor. E talvez por isso que a gente se permitia: um sacanear o outro. O engraçado era a reação das pessoas ao lado. Só porque o cara é cego, muita gente acha que temos que ter bastante dó. Eles acham que os caras não conseguem se virar. Fazer as coisas sozinhos. Por isso que vem aquele estranhamento bobo, aquela falta de jeito só porque conversamos como qualquer amigo conversa numa roda de botequim. Muita gente ficava de cara feia por causa do nosso papo. “Quer dizer que nesse fim de semana o doutor Silva foi no puteiro com os primos?” “Bicho! Os desgraçados falaram que ia me levar pra um bar, e daí quando percebi, o carro tinha pegado uma estrada de chão, então pensei: essa movimentação tá muito estranha. Quando chegamos lá, já comecei a escutar umas risadinhas das meninas. Cara! Os meus primos não valem nada, bicho. Fecharam o puteiro, e a gente ficou até tarde, foi bom demais, elas adoraram o ceguinho, disseram que era diferente. Eu pedi para desligar a luz. Sugeri pra que elas descobrissem o que é não enxergar. Meu amigo, a mão boba comeu solta. Foi tão bom que tive vontade de morar lá pra sempre.” “Vou te dizer um negócio: Silva, a minha amiga que vem aqui ajudar vocês é mô gostosa”. “Rapaz, eu percebi pela voz dela, deve ser uma rainha”. “A voz pode enganar, pô”. “Pra mim não engana, sou estudado no assunto”. “Perdeu a visão como?” “Ah desde moleque sou assim, então não é nenhum problema, quer dizer, é um problema porque me dá um trabalhão, né, ter que ficar pedindo uma informaçãozinha que seja não é tão simples assim, só pelo timbre de voz da pessoa, já dá pra saber com quem a gente tá lidando, mas foda-se”. Uma mocinha olhou pra gente com uma cara de indiferença e foi para o outro lado. Fazer concessão é ir até onde as pessoas se permitem chegar. O cego crente só se permitia ir até certo ponto, e ele tem todo esse direito, pô. Não seria eu que iria destruir aquele muro. Só o Silva que era mais despojado e a gente ria à beça. 

Certa vez me atrasei e não encontrei os dois. Até esperei um pouco, mas já tinham ido embora. No outro dia os dois me disseram que passaram por alguns problemas. Um embarcou no ônibus errado, e o outro quase caiu na escada. Outra vez os dois estavam perdidos caminhando em direção ao cemitério. Quando notei o erro, dei uma bela sacaneada. “Oh! Seus loucos! Já querem ir pra cova? Estão indo pro cemitério. Peraí!” Aí fui lá e vim auxiliando pela calçada. “Rodrigo! Meu amigo... É você?” “Sou eu, porra! Como vocês vieram parar aqui?” “O infeliz do motorista largou a gente aqui em cima, aí achei que o ponto estava na direção oposta”. “Sacanagem, mas vira essa bengala pra lá, pô”. “Tá com medo da bengala, Rodrigão?”. “Vira esse troço pra lá!”. Outro dia vi que na escola deles lá na L2 sul tem um projeto em que você pode ler voluntariamente qualquer tipo de texto ou livro. Os exemplares em braile são restritos. Na verdade eles ficam sem curtir muito texto bacana. Na reportagem mostrou uma mulher lindíssima fazendo uma leitura, e o ceguinho estava feliz da vida. Não sei se por causa do texto ou por causa dela. Que gata! Depois de ouvir do Silva que pela voz, você consegue descobrir como é uma pessoa. Tenho certeza que o camarada lá da reportagem tinha certeza da beldade que estava ao seu lado.

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